terça-feira, 14 de abril de 2015

A Cortesã Das Cinzas - Luciana Pigari


Há muitos anos, em uma visita a um asilo, eu ouvi a mais bela das histórias, vindo da mais bela das idosas presentes lá, idosa que vinha sofrendo de diversas deficiências mentais, tendo delírios que duram por horas, dias ou até mesmo semanas. Alguns desses delírios eram como filmes de terror. Outros, como sonhos de verão. Esse, portanto, era como uma história de vida, a qual ela acredita ter sido parte há muitas vidas, sob o mesmo nome, em um corpo diferente.
“Sabe menina,” ela começava. “Quando eu tinha sua idade, minha avó me contava looongas histórias sobre nossas antecessoras...” seus olhos brilhavam, mal sabendo que sua avó nunca esteve perto para contar-lhe essas histórias “Teve uma vez que ela me contou sobre minha vida passada. Ah sim, essa é uma história muito bonita, a moça tinha o mesmo nome que eu e parecia muito comigo quando era mais jovem.” Sua voz começava a tremer e seus pulmões reclamavam por todo aquele esforço, mas ela não desistia “Ah, mas a descrição da moça era muito bonita. Seus olhos eram castanhos, da cor das nozes que vemos jogadas pelos bosques. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite sem estrelas. Sua pele era branca, tão branca quanto a neve que caía todos os invernos. E seus lábios eram tão rosados quanto as flores de cerejeira, tão belas e delicadas quanto ela.” E assim, ela contava, em todas as minhas visitas, uma parte dessa história.
“O verão francês nunca foi tão belo. As plantas todas floresciam, o clima estava ameno e as crianças corriam e riam pelo grande jardim do Château de Chenonceau. Damas com seus longos e volumosos vestidos de tecidos macios e cintilantes andavam pelos caminhos traçados pelo meio dos jardins e cavalheiros andavam em suas roupas também ostentosas, conversando sobre os problemas ocorrentes na nobreza e também nos vilarejos, já que a doença chamada de Morte Negra estava atacando os camponeses e matando-os, um a um. A Peste Negra, doença horrível, deixava os doentes com grandes ferimentos, como bolhas enormes que, com o tempo, adquiriam uma coloração de cor escura, muitas vezes negra. Uma jovem em particular se mantinha atenta às conversas sobre tal peste, que levava pessoas a atear fogo em seus familiares e amados. Se preocupava com sua família, que estava do lado de fora dos enormes portões, acreditados por manter a ameaça do lado de fora, assim como os infectados. Sua preocupação era tão grande com os que estavam do lado de fora, que mal percebera quando a peste adentrou os altos muros do castelo e atacou também nobres e serviçais presentes ali. Duques, condes, cozinheiros e garçons se acumulavam em pilhas de corpos deformados, sem mais tantas diferenças entre si, exceto pelas roupas, que diferenciavam os nobres dos empregados. O dia em que a jovem Lorena perdera tudo foi o dia em que ela encontrou o corpo de seu amado no topo da pilha. Ficou devastada e não sabia mais como viver. Recebera notícias de que a casa de sua família fora incendiada com todos dentro. Seus pais, seus irmãos e suas irmãs tinham sido todos assassinados por culpa de uma doença que mataria a todos de mesma forma. A crueldade era tanta, que não saberia se aguentaria mais tempo vivendo aquele inferno.
Os dias se passaram, a epidemia se acalmava e Lorena ficava a cada dia menos feliz. Todos os motivos que tinha para viver e ter esperança se foram. Não tinha mais família para que voltasse. Não tinha mais um amor que a consolasse. Cada dia a mais de sua tristeza era um dia de uma nova loucura. Primeiro, tentara roubar um dos venenos em possessão de Catarina de Médici, mas seu fiel escudeiro, Nostradamus, escreveu uma profecia relacionando a Coroa a futuros furtos, o que deixou a rainha extremamente cuidadosa em relação aos seus bens. Após isso, tentou matar-se com uma faca que roubara da cozinha, mas não teve coragem para fazê-lo. Após várias tentativas não sucedidas, rendeu-se à vida que a torturava mesmo dando-a um gostinho de quero mais.
Não queria mais viver de tal maneira, começara a invejar todas as damas da corte por seus vestidos, penteados e por suas riquezas. Mas as invejava ainda mais pelos homens ricos que tinham aos seus lados. Embora sempre tenha sido cobiçada pelos duques visitantes, nunca havia prestado atenção neles. Encontrava sua única felicidade neles, nas noites de banquetes especiais, quando a arrastavam para um canto do castelo onde, muitas vezes, encontravam o prazer carnal que não seria encontrado em nenhum outro lugar.
Após a perda de seus familiares e de tudo o que tinha, o que um dia foram céus azuis que alegravam seus dias passaram a ser uma tela cinzenta. O sol não possuía mais o mesmo brilho que tinha há alguns anos. As nuvens não pareciam mais tão fofas e macias. Pareciam apenas grandes massas brancas, enfeitando e enfatizando a tristeza do céu sobre o que estava ocorrendo. Era um tempo difícil, sob circunstâncias agoniantes e nostálgicas. Mas não poderia desistir agora, estava tão próxima. Próxima de conseguir total confiança da nobreza, próxima de encontrar um novo motivo para viver, próxima de viver da maneira que sempre quis. Poucos raios de sol se infiltravam por entre os grandes pedaços de algodão e o céu começava a ganhar cor novamente. Havia esperança, mesmo que mínima, de que poderia ser feliz novamente. Então, se rendeu à luxúria. Era uma garota muito bela, atraindo olhares sempre que andava pelos grandes corredores. Olhares de admiração e desejo por parte dos homens; e de desprezo por parte de outras mulheres.
Sua luxúria e envolvimento com os homens lhe rendera uma fonte inesgotável de segredos, os quais ela usava sempre que ameaçada dentro do castelo. Possuía segredos sobre as intimidades das damas mais puras do castelo. Possuía segredos guardados que nem mesmo a própria rainha ouviria falar. Recebia por vezes bilhetes de ameaças vindos de esposas enfurecidas e de homens pedindo segredo sobre as traições. A ela não importava mais sua virtuosidade, apenas o que ela receberia por ter feito um bom trabalho. Sua presença era altamente requisitada entre os homens do castelo. Seu nome era escutado por todos os lados e, enquanto outras serviçais a invejavam por ter conseguido atenção tão facilmente, algumas ainda sentiam nojo pelo modo utilizado pela garota para consegui-lo. E foi assim que conseguiu encontrar uma parte de si que não teria reconhecido meses antes. E foi assim que, depois de muito tempo de batalha e de muitas noites sem dormir, ela finalmente esqueceu quem era.
Criara uma postura de uma dama nobre, como se seu lugar fosse no trono, e não limpando o chão em que pisavam. Começara a acreditar que não pertencia dentro de seus trapos sem cor e sem movimento. Pensava que era parte da nobreza. Seus modos de agir, pensar e falar mudaram. Aceitava seus trabalhos acreditando que eram uma punição. Se rendera à insanidade e aos desejos carnais.
Começara a ganhar um nome dentro das suntuosas paredes do castelo, não que lhe agradasse muito, mas trazia para si uma atenção que acreditava ser luxuosa, que dava aos outros o reconhecimento que sempre quis ter. Quem não a conhecia escutava atentamente aos sussurros e se lembrava naquele exato momento dos boatos correntes pelos grandes corredores sobre a belíssima Cortesã das cinzas. Virara a principal forma de entretenimento dos homens nobres e solteiros, cheios de desejo por seu belo corpo bem desenhado, considerado como perfeito pelos padrões da época, onde o considerado atraente era possuir curvas acentuadas e a cintura fina. Enquanto outras mulheres usavam espartilhos apertados, ela já possuía o dom da beleza. Com sua pele pálida e macia, seus cabelos de um negro tão profundo quanto o do céu da noite e seus lábios tão rosados quanto o mais doce pêssego, conquistara todos os homens com quem já dormira.
Essa vida lhe trazia um pouco de dinheiro, porém, durante os longos dias que se passavam, se vestia como uma serva comumente se veste: com seus trapos manchados, cobertos por pequenos remendos brancos e fiapos de tecido que estariam sempre ali para lembra-la de que ela não possuía territórios e muito menos as fortunas que sempre sonhara em ter. Durante a noite, em seu pequenino quarto, admirava um papel envelhecido, ainda selado, em cima de sua cômoda de madeira. Nunca tivera coragem de abrir tal carta, com medo do que poderia ser. Não chegara nem a ver o nome de quem a enviou, apenas a deixava lá, procurando no fundo de sua alma a coragem para quebrar o pequenino selo cinza e finalmente ler o conteúdo daquele pequeno bilhete.
Mais um dia de céu nublado no palácio. Mais um dia infeliz de trabalho. Suas designações eram as mesmas de sempre. Limparia os quartos que estariam a receber visitas da nobreza, ajudaria sua rainha a se arrumar e depois poderia arrumar os aposentos da mesma. Os aposentos de Catarina de Médici. Um lugar onde nunca pensou que poderia entrar e muito menos chegar próximo. Mal podia acreditar no que estava acontecendo. Esse era normalmente o primeiro passo para se tornar uma das empregadas exclusivas da rainha, que não só limpavam seu quarto e a ajudavam a se arrumar, mas também encontravam para a mesma os maiores segredos escondidos dentro das grossas paredes dos castelos, muitas vezes descobertos pela arte do sexo.
O cômodo era enorme, os lençóis de seda que cobriam a cama eram os mais macios que alguém poderia ver durante toda a sua vida. A decoração era luxuosa e cheia de detalhes da cor do ouro. As cortinas eram feitas do veludo de melhor qualidade. Toda e qualquer moldura presente no quarto era coberta em ouro ou prata. Apesar de não combinar com o espaço, uma garota vestida em trapos manchados da cor das cinzas sentia que era ali que ela pertencia. Apesar de seus cabelos despenteados e longos, de seus olhos escuros brilhantes e de sua postura nobre, ela era apenas uma empregada e nunca teria um lugar como aquele para si.
Lorena queria aproveitar o tempo que estaria passando sozinha nos aposentos da rainha. Ela sentou-se à frente do espelho e começou a olhar as joias, como se estivesse selecionando-as. Começou pelos brincos. Escolhera o par com as maiores e mais brilhantes pedras de esmeralda. Em seguida, colocou o colar extravagante que combinava perfeitamente com os brincos e adornou seus cabelos com uma tiara de prata, semelhante à coroa dourada que a rainha nunca tirava da cabeça. Ela finalmente se sentiu bela, como uma nobre, e perdeu a noção do tempo ao encarar sua imagem, agora tão diferente da usual, no espelho.
E então o olhar de admiração se tornou em terror. A imagem refletia não apenas o rosto delicado e pálido delineado por ondas escuras, mas, naquele momento, refletia também o rosto da rainha. Ela emanava ódio e desgosto. Como uma serviçal ousara encostar em suas joias senão para limpá-las? Aquilo foi motivo o suficiente para a rainha Catarina. No dia seguinte, a morte da jovem Lorena foi sentenciada para a próxima lua.
Durante o tempo de espera, a moça fora maltratada o suficiente para implorar pelo adiantamento de sua execução. Ela fora tratada como uma pagã. Ela não era alimentada e a pouca água que recebia tinha uma coloração marrom e um cheiro forte de carne em putrefação. Por diversas vezes fora violentada pelos guardas designados para mantê-la atrás da pesada porta de madeira. Memórias antigas enchiam sua mente todas as noites, para que pudesse manter-se forte e não ceder à maldade das pessoas.
Uma dessas memórias envolvia ele. Seu amado, Charles, e a infância que passaram juntos. Por serem parte dos camponeses, não tinham muito dinheiro e sabiam que, o máximo que conseguiriam, seria trabalhar no castelo. Desde pequenos, corriam pelos grandes campos, rindo e se divertindo como nunca mais conseguiriam. Dentro do castelo, quase não se viam mais. Ele, por ser cozinheiro, ficava quase sempre preparando os grandes banquetes reais. Ela, como empregada da rainha, perambulava pelos corredores luxuosos, desejando poder ter uma vida tão fácil e sem trabalho algum como a de vossa majestade. Queria poder andar pelo palácio em vestidos luxuosos, joias especiais e sapatos importados. Grande erro pensar que seria fácil assim. Grande erro não perceber que esse pensamento seria – e foi – sua sentença de morte. Pensava nas noites felizes que passara com Charles, naqueles tempos em que se viam como livres. Quando voavam como pássaros. Ela pensou nisso durantes os dias que passou encarcerada e também no dia de sua morte, enquanto esperava pelo aperto da corda em seu pescoço. E também pensou, durante seu último segundo, na felicidade que sentiu uma vez por ter conseguido um espaço no palácio.
Pensou também em como sentia ódio pela realeza, que tratara tão mal seu povo, esnobando-os por não fazer parte da nobreza, por não ostentarem roupas luxuosas, compostas por grandes vestidos de saias volumosas, marcando o tronco com corpetes e utilizando mangas tão bufantes e bem feitas como as das mulheres nascidas em meio à nobreza. As saias pesadas e volumosas, mantendo-se no formato desejado por armações de materiais pesados, se arrastando pelos corredores. Os penteados eram elaborados, geralmente com tranças ou rolos de cabelo, sempre com adornos como cordas, joias ou flores. Lembrava dos olhares de desprezo que muitas vezes recebeu, nos olhares de desprezo que receberia em sua execução, no desprezo existente no tratamento que estava recebendo enquanto ainda era mantida encarcerada. Odiou a realeza por ter feito isso com ela. Odiou a realeza com todas as suas forças e não esperou mais tempo para sua execução. Aquela tortura toda sobre ela deveria acabar. A execução não seria digna o suficiente para quem batalhou toda a sua vida para servir. Não podia mais esperar.
Pediu um pedaço de papel e uma pena, para que pudesse escrever suas despedidas antes de sua morte, e logo após terminar de escrever, assim que fez o último ponto final no papel envelhecido; se enforcou. Como não tinha peso o suficiente, a queda não teve força o suficiente para quebrar seu pescoço, ela sofria enquanto seu corpo pedia por ar. Quando finalmente morreu, após tanto sofrimento, encontrou sua paz eterna. A partir daquele momento, não haviam mais preocupações e muito menos olhares de desprezo. Não havia mais nada, apenas a expressão serena no rosto delicado de uma jovem com um destino cheio de desventuras, as grossas ondas escuras que já estiveram uma vez presentes em seus cabelos agora eram mechas escorridas e sem brilho. Suas vestes que já foram um dia cinzentas agora tinham uma cor de fuligem e barro. Seus pés descalços, pendurados no ar, estavam sujos. Mas nada importava naquele momento. Nada além de sua morte. Nada além de sua única escapatória dessa vida infortuna. Sua única chance de revê-lo, talvez em outra vida ou no pós-morte. A única maneira de estarem juntos. Por um último instante, seu coração se encheu de alegria e estava, mais uma vez, completo.”
Embora nunca tenha sequer encostado naquela carta, sempre em cima de seu criado mudo, isso deixou sua história marcada eternamente nos corações de quem a lê. Embora nem a carta e nem a garota sejam reais, a velha mulher acredita do fundo de seu coração que essa história tenha sido real, e que tenha acontecido com sua própria família, há 10 gerações atrás. Não pude negar que sua história é linda, porém saber que tenha sido criada pela esquizofrenia da velha quebra o meu coração. Semanas depois, torno a visitá-la, entretanto, não no asilo costumeiro e não com um bloco de notas. Volto-me para sua lápide e deposito um buquê de lírios-da-chuva, as flores preferidas da história criada por Lorena, lírios brancos, assim como os cabelos da idosa. Essa foi minha despedida. E esta história toda foi minha homenagem à tão boa alma, tão pura quanto as águas cristalinas que correm pelos riachos das áreas montanhosas onde viveras.
Mas havia, sim, uma grande semelhança entre a velha mulher falecida e a que criara em sua mente. Ambas possuíam a mesma condição psicológica e, no final das contas, ambas morreram longe de quem amavam. Dois homens simples, também com o mesmo nome. Dois reflexos de uma vida sofrida, dois lados de uma mesma moeda. Um lado brilhante, como novo, contra um lado envelhecido e distorcido pela própria mente.

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